sábado, 9 de outubro de 2010

São Petersburgo - dia 7


Se existe uma coisa que o homem deve manter na vida, custe o que custar é a palavra. Isso a gente traz de casa.  A honra. Tem até uma música de uma banda chamada Ultramen que diz que ‘a honra é coisa muito séria em qualquer região’, e é! Até mesmo aqui Rússia. Eu havia prometido para aquele camarada que trabalha fantasiado com roupas de época, em frente à Catedral Kazanskiy que eu levaria a moeda do Brasil pra ele e ontem quando voltamos lá e entregamos a moeda pra ele o rapaz não se acreditou. É recompensante ver no rosto, mesmo que seja de um desconhecido que provavelmente nunca mais verei, a expressão de surpresa e de que eu, um cara do terceiro mundo pode causar mesmo com uma coisa tão pequena como uma moeda de 25 centavos de real (cerca de 5 rublos).
Ainda ontem tivemos a certeza que miséria também anda nesse lados do mundo, obviamente. Existem na Nevsky Prospekt vários homens com seus 40-50 anos pedindo dinheiro, alguns fardados, outros não e todos com as pernas amputadas. Não falo russo e não quis sair perguntando para ninguém na rua e por isso tiro minhas conclusões que podem ou não ser as certas. Esses homens, pela sua idade e expressão nos rostos provavelmente são ex-combatentes das guerras do Afeganistão. Como todos sabem, a antiga União Soviética esteve presente no Afeganistão de 1979 até 1988, se não me engano, até ser bem dizer ‘expulsa’ pelo Talibã que vinha sendo treinado pela CIA e Estados Unidos (foi dessa leva que saiu o bin Laden, al Zawari e AlQaeda) e ter que bater em retirada. Durante este período um dos grandes motivos de baixas nas tropas soviéticas eram as minas terrestres, que ainda hoje assolam uma grande parte da população afegã e de tantos outros países que passaram ou passam por guerras. Também, enquanto caminhávamos na Nevsky ontem, ao passar vi uma senhora de uns 70, 70 e poucos anos, com roupas muito surradas e a cabeça coberta com um lenço. O rosto sofrido como muitas pessoas que vemos por aqui e a sensação térmica através da combinação da temperatura atmosférica e o vento que soprava me amoleceu o coração. Em fração de segundo me passou pela cabeça que aquela senhora, com aquela idade, que provavelmente sobreviveu ao cerco de São Petersburgo e todas as privações e dificuldades que aquele evento trouxe à cidade e depois ao regime comunista que também não foi nada divertido precisava nesta altura da vida, estar na rua pedindo esmola para sobreviver. Dei duas moedas de 5 rublos pra ela (isso equivale a pouco mais que 50 centavos de real) e a reação dela foi imediata. Com uma satisfação e uma expressão de agradecimento ela me olhou e disse algo do tipo: ‘spasiba, Budʹte zdorovy’ (obrigado e que Deus te abençoe). Pequenos gestos, pequenas coisas, mas que o coração da gente fica mais leve.
Hoje de manhã levantei antes que a Fer, ali pelas 8 da manhã e quando eram 9 horas eu estava na rua. Fazia frio e saí para procurar uma loja de artigos militares russos que havíamos visto ontem à noite na internet. Pedi algumas informações sobre a rua desta loja (Sadovaiya Ulitsa) e saí na caça. Saí da Bolshaya Koyushennaya, que é onde fica o hotel que estamos hospedados (Nevsky Grand) e peguei a esquerda na Nevsky Prospekt. Andei menos de 10 minutos da Nevsky e atravessei por uma passagem subterrânea, aonde funciona uma galeriazinha, com lojinhas ‘micro’ que vendem diversos souvenirs e saí em uma escada no outro lado da rua. Olhei para a placa que identificava o nome da rua, em cirílico, e foi de imediato que reconheci qu estava na Sadovaiya Ulitsa (a essas alturas já estava me sentindo um Jason Bourne da vida). Menos de um quarteirão e estava em frente ao portão que daria acesso a um tipo de pacinha cercada por prédios de 4 ou 5 andares e aonde o único comércio era essa loja. A porta de ferro estava trancada e a placa indicava que abriria as 10 da manhã. Como eram 9:15hs, voltei pro hotel. Cheguei de volta eram umas 9:30hs e a Fer estava acordada, lendo seus emails e então descemos pra tomar café.
Aquele cardápio típico do café da manhã aqui do extremo leste: salada de repolho, salsicha, macarrão, tomates, pepinos crus e em conserva, pães, embutidos (diferentes de qualquer que eu tenha visto) e tinha um peixe. Pensei: ‘Altos!!’. Me servi de algumas dessas coisitas e inclusive dois pedaços de peixe (lembrei daquele peixe do café da manhã de Helsinki). Hoje não estava passando aquele ‘vídeos incríveis’ na TV mas ainda assim conseguimos sentar em um lugarzinho mais reservado e com menos barulho da TV. Coloquei um pedaço do peixe na boca e mordi com vontade! O peixe era cru, em conserva no óleo com vinagre e escorregou entre meus dentes. Sabem aquela sensação de morder algo meio borrachento e escorregadio. Acho que o que mais se parece com o aspecto é carne de sapo crua! Não consegui comer o peixe. Fui obrigado a deixar de lado. Me perdoe Senhor!
Saímos então para nossa caminhada e decidimos, como dizia Jayme Caetano Braun, ‘de primeiro’ ir na lojinha do exército russo.
Um poraozinho que poderia muito bem servir de abrigo anti-bomba em caso de ataque aéreo e claro: no english. A mímica pegou frouxa para conversar com a turma lá. Muitos uniformes de combate, insígnias, bandeiras, quepes e outras tranqueiras. Pena (mais ou menos pena, né?) que a viagem ainda é longa e que não poderemos carregar tanto peso senão teria sido interessante ter adquirido uma tranqueirada aqui na Rússia.
Na volta entramos na Catedral Kazanskiy (http://en.wikipedia.org/wiki/Kazan_Cathedral,_St._Petersburg) que apesar de termos passado em frente diversas vezes ainda não havíamos entrado. Foi forte o negócio! Eu nunca em meus 35 anos de vida havia sentido um força tão grande dentro de um chão sagrado! Essa Catedral (em russo, sobor) foi um museu da religião e do ateísmo durante o regime comunista. Hoje é somente religioso e a palavra ateísta foi tirada de sua descrição. E lá dentro é muito fácil entender o porquê. Fiéis fazem fila em frente ao altar principal com velas para serem acesas e após acenderem suas velas beijam os quadros com as imagens dos santos e patriarcas da Igreja Ortodoxa. Quando Napoleão invadiu a Rússia, o General Kutuzov (o qual tem uma estátua em sua homenagem em frente a esta igreja) pediu socorro a Nossa Senhora de Kazan que deve ser a mais venerada na Rússia (como se fosse Nossa Senhora Aparecida, no Brasil) e depois da vitória russa sobre as tropas de Napoleão a Catedral foi considerada como ícone da vitória sobre aquelas tropas. Dizem que o corpo de Kutuzov foi enterrado nessa Catedral, mas isso eu não vi lá. O que vi foi realmente a fé do povo nesta igreja que as mulheres não entram sem estar com a cabeça coberta e aonde a religiosidade e o axé que emana em seu interior são muito fortes. Meus olhos encheram d’água lá dentro.

Imagem de um vitral do lado externo Catedral Kazanskiy

De lá fomos procurar a estátua de Pedro, o Grande (http://en.wikipedia.org/wiki/Bronze_Horseman) que ontem descobrimos que fica no Alexandrovskiy Garden (aquela que fomos ontem é de outro kzar, Nicolau I).
Chegamos nesta estátua depois de tirarmos umas fotos no Alexandrovskiy Garden e haviam dois casais de noivos lá, tirando fotos junto com parentes e alguns convidados. 
No Alexandrovskiy Garden 


Estátua de Pedro, o Grande

 Da estátua de Pedro, o Grande, fomos rumo a Fortaleza de Pedro e Paulo (http://en.wikipedia.org/wiki/Peter_and_Paul_Fortress) que fica no outro lado do Rio Neva. Nessa altura o passeio já havia se tornado um sofrimento para a Fer que estava com muita dor em um de seus pés e por isso fomos caminhando bem devagar. Chegamos na Fortaleza e compramos os tickets para visitar as principais atrações deste local. Fomos na Catedral de Pedro e Paulo, principal e mais central construção da Fortaleza e local aonde estão enterrados os restos mortais de muitos cazares e cazarinas (Pedro, o Grande – do qual as pessoas em São Petersburgo falam com muito orgulho e respeito, Ekaterina, Alexander, Paul, Elizabeta e outros da linhagem) e também os ministros e algumas pessoas importantes ligadas ao antigo Império Russo. Em 1988, Boris Ieltsin, então presidente da Rússia mandou enterrar lá, nessa igreja, os restos mortais de toda a família real Russa que foi assassinada na revolução de 1917 pelos bolcheviques.
 Quase na entrada da fortaleza
 No pátio
 Imagem dentro da Igreja de Pedro e Paulo
 Vista do altar principal
Galera aproveitando o sol do outono na beira no Rio Neva
 
Decidimos petiscar e aí veio uma parte engraçada (agora que já passou). Tinha uma banquinha e fomos verificar o que tinha pra comer. A Fer pediu uma pizza, individual, pois era o que tinha. A tia que atendia parecia uma daquelas ciganas que atacam o cara na rua pra ler a mão e arremessou a pizza na frente da Fer e disse: mushroom!! Quase que a Nega pediu desculpas pra tia por estar comprando um rango na banquinha dela. Eu pedi um cheeseburguer e ela jogou ambos no microondas e colocou pra aquecer. Pegamos um chá Nestlé, Lipton e sentamos ao lado da tal banquinha pra comer. Até que o gosto não era tão ruim, ainda mais quando se está com fome. O chá não. Esse tava ruim e não deu pra beber até o final. Ainda fomos na frente na fortaleza e na exposição que se chama ‘Cortina do Neva’ e fala sobre as chuvas em São Petersburgo e as roupas utilizadas pelas pessoas nesses períodos chuvosos. Também fomos na Antiga Casa do Comandante da Fortaleza e Museu da História de São Petersburgo de 1703 até 1918. Na Trubetskoy bastion que era uma prisão para presos políticos na época do czares pudemos ver as celas e também como os presos políticos eram tratados na época dos czares. Os guardas, quando os presos políticos eram recebidos na Trubetskoy bastion viravam de costas para o preso na entrada das dependências da prisão pois ninguém podia ver a cara dos presos políticos em respeito às suas identidades. Cada cela era individual e o preso tinha direito a livros, cobertores e contato com sua família. Como tudo é escrito e falado em russo perdemos muita informação nesse tipo de visita. Mas algo que me impressionou foi que após a tomada de poder pelos bolcheviques, as celas que até então eram ocupadas por apenas um preso passaram a ser ocupadas por mais de quinze. Os bolcheviques não prendiam apenas pessoas ligadas ao Império Russo mas também pessoas de classes sociais mais altas, que mesmo sem ter ligação com os czares eram presos somente por não pertencerem ao proletariado.
Dali, fomos almoçar, já eram umas cinco da tarde, novamente no Pizza Hut. Na saída fomos fazer o passeio de barco pelo Rio Neva, que levou uns 40 minutos e diga-se: 40 congelantes minutos! E o passeio narrado em russo, claro! Pelo menos a mulher do barco foi simpática e nos deu um livro que o guia que provê a narração em inglês (que acontece uma vez ao dia) usa para descrever os pontos chaves deste passeio. 
Acabado o passeio, de volta ao hotel pedimos uma janta (sopa/creme de legumes pra Fer e o famoso prato de origem russa, o strogonof, pra mim).

4 comentários:

  1. Grande Madá, muito massa a narrativa de hoje.

    Quer dizer que o frio ai ta pegando eh? Passear no frio nao eh nada bom. E como ta o pe da Fer?

    Grande abraco.

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  2. Nossa, quantas coisas GRANDES pra visitar!
    Lembro quando entrei pela primeira vez na Catedral de Washington, quando não pude conter as lágrimas - e ela, também fiquei sabendo então, foi sempre aberta às várias representações de fé. Isso faz, no meu entender, a força da emoção que abraça a gente, porque todos são acolhidos e ali "despejam" os fardos e os agradecimentos. Penso eu, porque a energia é quase visível aos olhos...
    Mas aí a dimensão é outra, quanta angústia, quantas tragédias, quantas vidas lamentadas, quanta desesperança, quanto fim, quantos túneis sem nenhuma luz.
    Mas estou preocupada com o pé da Fer... a Elisa disse que tem que enfaixar mesmo e repousar o que der - mas sabemos que essa parte é mais difícil. Tentem deixar o pé em repouso em qualquer ocasião, anyway. E enfaixado, firme.
    Beijos, fiquem com Deus.

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  3. Tuas narrativas são sempre emocionantes, Madá! Dei muita risada numas partes e me comovi com outras. As pessoas são muito diferentes mundo afora, mas ainda assim tão iguais na essencia. Deus te abençoe pela compaixão, porque tantos veem as mesmas coisas e não percebem a miséria e a grandeza que você sente e descreve.
    Depois da queda do comunismo o sentimento religioso se reacendeu na Russia, provavelmente com mais fervor ainda, depois de tanta repressão.
    Tanta coisa interessante e bonita pra se ver aí, estou encantada com as fotos, estão lindas!

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  4. Puxa nem sei o que dizer, tambem me emocionei lendo cada parte. Imagino que povo mais sofrido, que pais mais machucado por tanta guerra e maldade. Uma visita de um casal como voces so traz leveza e piedade pra quem encontrou com voces e teve o olhar levantado pra receber essa compaixao. Deus os abencoe.
    Espero mais noticias a noite ;) beijos, ques fotos mais lindas....

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